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Um Mapa Recém Formado

Um Mapa Recém Formado
Pedro Alves Godoi
ago. 31 - 10 min de leitura
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O NeoMuseu da Praça da Nova República era um prédio singularmente interessante em meio a um decadente centro composto de prédios de arquitetura antiga e predominantemente moderna degradadas pelo tempo devido aos remendos arquitetônicos que formavam aquele edifício em particular que pareciam incluir a maioria dos movimentos que fizeram parte da história da República dos Agulhas Negras. De uma das janelas do enorme Setor Histórico, Lucas encarava a rua escondida pelo véu escuro e amarronzado da tempestade de areia que no momento devorava a cidade como um todo e transformava em noite o dia que existia há menos de quinze minutos. 

Ele se virou e encarou o Setor Histórico, um enorme e espaçoso corredor retilíneo ornamentado por quadros e mesas inteligentes que contavam diversos aspectos do mundo antigo e do novo. Junto dele existiam três outras almas que de tão pontuais não chegavam a realmente fazer diferença mediante a grandeza do lugar.

Dispostos ao redor de uma das Mesas Inteligentes, um largo monólito negro dotado de inteligência artificial e tecnologia holográfica, existiam as figuras de Mário, Luis e Thaddeu, todos da turma de Lucas na Escola Histórica de Dom Capistrano, sendo o último o professor deles.

- Então, todos prontos? - Perguntou Thaddeu tendo um sossegado sim como resposta.

Lucas se aproximou da mesa, não gostava muito das aulas de história mundial apesar de achá-la um assunto interessante de ser discutido.

- Ótimo. - Ele disse e ativou a mesa com um botão. 

As cores resplandecentes e quentes da mesa saltaram para o ar dando vida e calor a um corpo frio e morto indicando a ativação dos sistemas holográficos e de realidade aumentada e em poucos instantes se pintou a vista de todos um extenso mapa sem nome qualquer sob ele apenas cinco cores diferentes colorindo territórios distintos com variadas dimensões, um era verde, outro azul e mais um amarelado. Um dia aquele show de luzes houvera sido uma das coisas mais impressionantes que Lucas já havia se deparado, mas agora parecia fútil e repetitivo, possivelmente pelo contexto que aquelas cores pintavam.

- Quem de vocês pode me dizer o que é isso? - Ele questionou.

- Um antigo Mapa Mundi político. - Responderam os três.

Thaddeu sorriu, seu jeito agradável seguia as feições simpáticas envelhecidas que dominavam seu rosto e cabelos brancos.

- Podem me dizer onde estão as principais diferenças entre esse e o nosso?

- Em todo ele. - Respondeu Lucas.

- Exato...vejam, a aula de hoje será sobre Fatos Históricos, quero que saibam alguns importantes por cima para pesquisarem especificamente sobre eles depois, ok?

Os três assentiram.

- Podemos começar pelo nosso contexto… - sugeriu o professor, ao passo que os três concordaram novamente.

- Qual o evento histórico marca o fim da Antiga República?

- O Golpe de 2030… - Disse Luis, do seu jeito naturalmente arrogante.

- Também porém teve um mais geral, um que engloba o golpe militar.

- O final da guerra civil em 2028 e o estabelecimento do Governo Provisório em 2029. - Disse Mário, que era o oposto ideal a figura de Luis tanto em jeito quanto em fala. Quieto, Lucas apreciava ver Luis errar e seus sucessivos tombos do pedestal imaginário em que colocara a si mesmo. 

- Exatamente.- Ele falou de um jeito animado, como se recompensando a resposta correta. - O final da guerra e do governo provisório deram as condições para o golpe, não fosse por isso não haveria contexto para a tomada de poder e por consequência não existiria apoio popular suficiente...mas existem outros dois eventos que eu quero que se lembrem da nossa república, podem me dizer quais são?

- A Queda da República de São Paulo e o Cinturão Nordestino. - Disse Lucas sem titubear. 

- Muito bom. - Dissera Thaddeu sem o entusiasmo de antes e em seguida anunciou - vamos passar para a Europa...qual a primeira coisa que chama a atenção de vocês?

Os três olharam atentamente o mapa por alguns momentos. 

- Pra mim é isso aqui - disse Mário e apontou para um território no meio do mapa, um pequeno traçado quase invisível no continente entre a República Germânica e o Reino Inglês fazendo fronteira com outro pequeno tracejado desconhecido. Luis e Lucas o acompanharam no estranhamento. 

Thaddeu elogiou a visão de seus alunos apesar de sua voz não ostentar o carisma de antes. 

- Isso aí é o que se chamava de Holanda, ou Países Baixos. Era uma pequena monarquia constitucional que existia entre um país chamado Bélgica e a Alemanha...esse maiorzinho aqui que hoje é a República Germânica.

Os três o encararam.

- Qual foi o evento climático mais relevante dos últimos 200 anos? - Ele perguntou mirando o mapa.

- As Grandes Inundações. - Disse Luis e ouviu apenas uma tentativa do mesmo elogio carismático que o professor ofertara a Mário.

- As grandes inundações não são chamadas assim por acaso, depois das mudanças na África pelo calor e do Permafrost no Canadá e na Groenlândia, foi a vez da Europa ser atingida em cheio poucos meses depois em 2040. As grandes inundações exterminaram territórios inteiros por lá...um exemplo é o mapa da própria Alemanha, lembrem-se de que só se tornou República Germânica depois das Inundações, que hoje é só metade do que é mostrado aqui...as Grandes Inundações reconfiguraram praticamente o mundo inteiro por anos à fio...outro exemplo é no sudoeste asiático, onde existia um país enorme chamado Indonésia que perdeu quase sessenta por cento do território pra água, incluindo a antiga capital Jacarta… - ele explicou - mas sigamos...qual outro evento cataclísmico é importante na historiografia européia?

- O vírus 34. - Responderam.

- Exatamente...e o que foi o vírus 34, Lucas?

- Uma cepa evoluída do covid-23. 

- E qual era o contexto em que se espalhou o vírus 34, Mário?

- Depois das mudanças climáticas, houve uma onda de refugiados vindos de várias partes do mundo que tinham como destino principal os EUA e a Europa, mas como eram muitos isso causou vários problemas de instabilidades política e social nesses lugares. Aí...em 2034, nos EUA, um refugiado canadense portava uma cepa evoluída da covid-23 que escapou do controle dos Cinturões Sanitários e foi parar na Europa, onde se tinha uma concentração muito alta de refugiados climáticos que estavam sendo direcionados pra várias partes do continente americano, europeu e sendo retornados ao seu país de origem...então essa cepa acabou se espalhando sem muita dificuldade pra lugares que estavam instáveis socialmente daí como não havia vacina e nem medicação pra se inibir o vírus em lugares ainda controlados, acabou que se ocorreu a Onda Vermelha, que dizimou dois quartos da população mundial. 

- 3.5 bilhão de pessoas...esse é o número de mortos pelos vírus que chegamos por modelos estimados matematicamente por Inteligência Artificial, tirando outros 280 milhões de mortos pelas mudanças climáticas. - Disse Thaddeu, agora em um tom abaixo, próximo ao pesar.

Os três se silenciaram junto de seu tutor.

- De quando vocês são?

- Eu nasci em janeiro de 70. - disse Mário.

- Eu setembro. - Luis o acompanhou.

- E eu em novembro. - Lucas terminou. 

- Eu nasci em 2051, fevereiro de 51, mais ou menos uma década depois das Grandes Inundações terem avançado até seu ápice e durante o caos do vírus...eu ainda lembro de quando criança ouvir falar dos refugiados climáticos e das alterações nos mapas. - Os olhos dele miravam o mapa sem um ponto específico, estavam imersos neles mesmos apenas vocalizando sentimentos expressos nitidamente pelo olhar pesaroso. - Quando eu entrei pro Governo dos Agulhas Negras um professor meu me disse que os mapas eram meras conveniências porque enquanto a natureza humana seguisse como é, jamais haveriam fronteiras fixas...durante um tempo eu não entendia o que isso queria dizer exatamente, mas hoje em dia eu entendo...os homens que desconhecem o passado estão fadados a repeti-lo, nunca se esqueçam. Nunca repitam o passado. - Ele terminou. 

Os três se entreolharam incertos do que dizer ou até mesmo para onde olhar enquanto Thaddeu mantinha sua vista sobre o mapa, seus olhos estavam marejados.

- Me digam… - ele começou com a voz bamba - qual é o conceito de refugiados climáticos?

- São pessoas que foram forçadas a mudar de país ou cidade por alterações extremas de temperatura ou ambiente. - Disse Luis, com a agora feição cabisbaixa.

- Vamos dar uma pausa? - Perguntou Thaddeu.

Ninguém resistiu à ideia.

Lucas voltou sua atenção a janela, a tempestade de areia já havia passado e os raios de luz solar do meio dia já irradiavam pelo corredor ao passo que as luzes públicas de emergência haviam se apagado e os grandes e pesados caminhões de limpeza pública perambulavam pela rua recolhendo a areia espalhada por todo lado. Ele olhou ao redor da rua, primeiro para os prédios decadentes agora empoeirados e então os pequenos besouros caminhando pelas ruas se apressando para remover as grossas lonas de tecido estendidas nas tendas de frutas e abrir os comércios paralisados enquanto a vida voltava a perambular por aqueles lados. Ele mirou o céu claro pensando sobre como quando retornasse para casa se chegaria a tempo de evitar a próxima tempestade e, de certa maneira, percebeu porque não gostava das aulas de história. 


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