Saudade.
Bicho estranho
que aperta,
caçando fissuras
para trincar,
desarrumando gavetas
que se supunham fechadas,
arrumando intrigas
para frustrar.
Saudade.
Não tem parâmetro
para encaixar,
não tem caixa
para guardar,
não há simetria
nessa enrolação.
Apenas paradoxo
e contramão.
Saudade é bicho estranho.
Saudade não tem pena,
nem pele, nem redenção.
Saudade arrisca delinquir,
violentar,
arrisca ser
o que esteve sempre aqui,
arrisca o pescoço
e esse ar.
Saudade cobra
a fatura do mês,
os juros das horas,
as horas de um beijo.
O tempo arrisca confrontar,
mas a saudade
vem de longe buscar
as fotografias
mal tiradas,
a memória senil,
os cômodos
em reboco,
e os recados ainda afixados
em ímã de geladeira.
A saudade,
por fim,
é cruel:
diz o que eu não sabia dizer.
Diz que ainda
há amor nesses cômodos,
nessas fotos ridículas,
na caligrafia horrenda
deste bilhete pueril.
Sim, eu ainda amo,
e sinto a sua falta
como da primeira vez,
da segunda, terceira...
até da última
em que você partiu.
Ainda te amo
e tanto...
(MARTINS, Luciano R.. Sexta, 31 de janeiro de 2020.)