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Repercussão

Repercussão
Pedro Alves Godoi
Aug. 24 - 11 min read
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- Por que eu tô’ aqui? - Questionou Glória, sua voz era rouca e não escondia o cansaço e a preocupação, gritantes em seu rosto bem como as marcas das horas de choro que antecederam sua chegada a Delegacia.

- Só queremos checar a sua história, vamos de novo, por favor. - Disse Amélia, a guarda de rosto gentil e simpático que se postava do outro lado da larga mesa de metal fina que separava as duas.

- EU JÁ DISSE, FOI A CASA, A CASA DEVOROU ELES! - Disse desesperada, os olhos encheram de água novamente ao passo que a expressão da interrogadora mantinha-se neutra.

- Eu sei que já disse mas não tinha falado pra’ mim ainda, você entende que não posso só te liberar sem entender o que exatamente ocorreu. Vamos repassar mais uma vez, no seu tempo.

Glória olhou em volta desnorteada a medida que o furor desesperado subia-lhe o corpo. Levou as mãos ao rosto enquanto as lágrimas quentes escorriam pelo rosto jovial e frio. Sentia-se exausta e com frio, o medo e o pavor de estar sozinha por todas aquelas horas era horrível de ser experienciado e tornava-se ainda pior quando pensava nos rostos de Mateus e Lucas, que somente Deus deveria saber onde estavam.Amélia ouvia-a choramingar por alguns minutos e então se levantou, saiu da sala de quadrados monocromáticos xadrez e retornou oferecendo um copo de água acompanhada de um rosto leniente; ela esperou Glória se acalmar e então seguiu.

- Você...quer dizer, seu depoimento diz que estava com seus amigos quando aconteceu.

Ela assentiu.

- Diz aqui - Amélia ergueu uma porção de folhas de papel organizadas dentro de uma pasta amarelada - que você descreve uma coisa que parecia ser “uma brecha na realidade” que sugou seus amigos.

Glória começou a sentir-se desesperada novamente mas logo sentiu o furor ser apaziguado por uma onda calma que invadiu seu corpo. Os olhos ainda queria suar ininterruptamente mas logo a vontade fora cessada por uma súbita calmaria.

- Isso, estavamos só nós três.

- Pode me dizer como era seus amigos.

- Eram o Lucas e o Mateus, eles são meus colegas de classe, estudamos as mesmas cadeiras na Escola Politécnica.

- Os três estão se formando para serem Técnicos em Administração?

- Isso.

- E se conheceram na Escola?

- Sim, eu conheci o Lucas primeiro e depois o Mateus.

- Quanto tempo se conheciam?

- Dois anos. Eles eram meus únicos amigos. Nós…

- Vamos fazer uma pausa. - Anunciou Amélia abruptamente. - Podemos voltar a falar em alguns minutos, logo um guarda virá buscá-la.

- Eu… - começou Glória enquanto via a interrogadora se erguer. - Poderá ligar pros’ seus pais assim que o guarda chegar. - Respondeu ela, seu tom de voz era completamente diferente de antes, se tornara em uma fração de segundo grave e rude, parecendo até mesmo raivoso.

Amélia saiu da sala. Glória, agora completamente só, parecia estar deslocada do planeta Terra. Não se ouvia som nenhum e sentia-se como flutuando no mar.

O ambiente era estranho, para se dizer o mínimo. A sala era quadrangular e pequena, à frente de Glória estendia-se uma larga mesa metálica que não tinha nada em comum com a coloração xadrez que se espalhava pela sala e era abruptamente interrompida por um imponente monólito de vidro quadrangular escuro que separava-a dos olhos curiosos e bravos dos outros investigadores. Apesar de tudo, estranhamente sentia-se confortavelmente desconfortável com a situação, o horror e o desespero dos acontecimentos da casa surgiam a sua mente sem parar porém mais pareciam memórias de um machuca ocorrido há éons atrás do que há somente seis ou sete horas. Em sua cabeça ecoava as vozes horrorizadas de Lucas clamando por ajuda e Mateus chorando agoniado ao passo que aquela coisa surgia no ambiente e devorava-os ambos. 

Era algo bizarro, disforme e ameaçador, somente assim conseguia lembrar-se da coisa que mais parecia um erro no próprio tecido da realidade do que algo físico e palpável. Não era algo físico, não poderia ser. A imagem daquilo era inconcebível agora. “O que mais poderia ser próximo a uma descrição?” pensou e somente uma palavra veio a sua mente “indescritível”. A única explicação para ela era a casa, a casa havia devorado Lucas e Mateus, havia aberto uma bocarra escura e fria que deformou os móveis e o próprio ar entorno de si enquanto avançara sobre os dois. Glória sequer lembrava o porquê de ter se salvado, por algum milagre Deus intercedera por ela e a salvara das garras daquela coisa. Mas porque Vanessa...porque somente ela escapou?

De repente, Amélia entrou na sala novamente portando consigo um copo de água, pousou o copo sob a mesa e sentou-se sem falar nada.

- Onde tá’ o guarda? - Questionou Glória.

- O guarda não virá agora.

- Por que? - Ela perguntou e sentia mais uma vez o desalento que era combatido por uma onda frenética de ansiolíticos. O rosto se deformava para chorar mas logo tornava ao normal.

Amélia encarava a mesa, levantou o olhar e disse.

- Não posso permitir que você saia da sala por agora.

Glória ficou atônita e silenciosa. O furor dentro de si parecia irrefreável mas em uma fração de segundo era silenciado para logo retornar, sua mente era um mar em fúria revoltoso abraçado por uma praia calma e uma leve brisa de verão que parecia contê-lo com a força de uma barragem.

- Por que não? - A voz dela se tornara cabisbaixa e o tom depressivo, soando como um sussurro.

- Porque eu quero saber exatamente o que aconteceu.

- Eu já disse.

- Não pra’ mim.

- Quem é você?

- Meu nome é Amélia e quero saber como você sobreviveu e o que foi que você viu.

- EU JÁ DISSE ISSO!

- NÃO! - A voz de Amélia se tornou grave e rude, o tom alto e autoritário pareceu repercutir dentro da alma de Glória empurrando todo o seu furor acumulado a posição de um filhote perdido clamando por ajuda - Você falou pros’ guardas que a casa comeu seus amigos, nós sabemos que não é assim que as coisas funcionam e precisamos saber como elas aconteceram e por isso eu quero saber só de uma coisa. Vocês já tinham entrado lá antes?Na casa?

Glória começou a chorar.

- Entendo. - Disse Amélia.

- Nós tínhamos entrado lá pra’...pra’ ajudar ela, era pra’ ajudar eu juro.

- Tinha uma terceira pessoa então.

Glória assentiu - O nome dela era Vanessa, ela era nova na Escola, era muito tímida e começamos a conversar por acaso, ela tinha os mesmos problemas que nós, foi tudo muito natural. Ela era bastante simpática e tinha um medo de pessoas novas, nós combinamos de se encontrar na casa e só festejar um pouco. Só isso… 

- A casa levou ela também?

- Não, não… - A imagem veio a mente de Glória, o corpo putrefato, cinzento e enrijecido pela decomposição,  pendurado por uma corda na sala da cozinha com a boca aberta e os olhos esbugalhados - ela…

Amélia fez um sinal com a mão e a silenciou antes de descrever a cena - Não é preciso. 

Ela permitiu a Glória chorar por alguns minutos.

- Por que foram para a casa?

- Era um lugar calmo, o único que nós três conhecíamos...íamos só beber e passar o tempo.

- Isso foi idéia da sua amiga?

- Sim.

- Por que esta casa?

Glória não entendeu e Amélia, percebendo, recuou de sua ofensiva e passados alguns instantes perguntou.

- Você tem problemas familiares?

- Sim.

- Lucas e Mateus também?

Glória assentiu.

- Os três tem problemas com os pais?

Ela assentiu novamente.

- Como é o nome todo da sua amiga?

- Vanessa, acho que o sobrenome era Grudzinski.

Amélia levantou-se e sem explicar saiu da sala.

Um borrão branco tomou conta de sua visão e após alguns segundos de tontura e visão embaçada ela estava em pé ao lado da cama rodeada por duas figuras de jaleco que monitoravam seus sinais vitais.

- Consegui. - Disse ela para um dos homens, os quais ela em algum momento soube os nomes mas não se importava em lembrar ou se dava o trabalho de ler a etiqueta em seus jalecos..

- O nome?

- Vanessa Grudzinski, vou avisar Control para mandar uma Força Tarefa atrás dos conhecidos.

Amélia dizia enquanto marchava para a cama imediatamente ao lado da sua onde jaziam o que restava do corpo de Glória, outrora uma adolescente comum de classe baixa oriunda de uma familia com histórico de desorganização por dependência química e traços de violência parental. Era esquisito para ela pensar que aquela figura escurecida por carbonização e machucada por lâminas afiadas ainda se imaginava como uma menina no alto de seus quatorze anos.

- Senhora, o que fazemos com o corpo? 

- O que foi ordenado?

- Seguir com o Protocolo de Dispensa Padrão mas Control nos avisou que talvez a senhora quisesse algo diferente.

Amélia fitou-o.

- É, eu quero sim. Mandem ela para algum cemitério na cidade natal dela.

Ela ouviu uma porta se abrir e a figura singela mas estranhamente ameaçadora de Control emergir do portal.

- Imagino que tenha conseguido. - A voz dele era simpática.

- Vanessa Grudzinski, é possível que seja uma cultista. - Enquanto ela falava acompanhava com os olhos Control se postar ao lado da cama em frente a Amélia.

- Malditos animais - Proferiu. - Acha que concluíram algum ritual?

- Possivelmente uma invocação, mas nada que não possa ser revertido. Ela disse que a amiga morreu, ao menos se lembra assim...é provável que o ritual tenha falhado porque ela sobreviveu. Vou coordenar uma expedição para descobrir e mandar uma FTM investigar os conhecidos dela.

- Acredita que seja alguém relevante por trás?

- A Pirâmide ou Culto, não dá pra’ precisar agora.

Control matutou fitando o nada.

- Os Ansiolíticos Sintéticos funcionaram em um nível profundo então, duvido que alguém em condições normais conseguiria se lembrar de eventos tão traumáticos sem ajuda de drogas. - Disse mas a desumanidade dele era cotidiana e se tornara trivial com o tempo. 

Ele percebeu os olhos dela sob Glória.

- É uma pena. Acha que consegue coordenar uma expedição?

- Absolutamente.

- Ótimo - Ele disse e se voltou para a porta. - Vou emitir os comunicados e vai partir de imediato.

FIM.


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