Não canto versos para que umedeças teus olhos.
Eu os canto para que sintas teus pés pisarem o chão.
A mim foi dado este fado, assim o quero e faço.
Daí eu não cantar versos de enfado
ante o cheiro dos mendigos,
pois sei que por trás de cada olhar
que pede, bate um coração enjoado
de bater num corpo que simplesmente
se agarra ao que lhe resta em vida.
Daí eu bater papo com os violentos,
e não temê-los , pois consigo enxergar
em seus olhos o medo que sentem
de mostrar quem realmente são.
– A ti, pregado aos espólios sucessivos,
canto versos à minha e à tua redenção!
Não canto belos versos de unificação
pois, apesar dos membros arrancados,
a espécie é mantenedora da união.
É de se aceitar ser mesmo difícil
navegar pelo oceano da unidade
mas, apensar de todos os cacos de cultura,
fragmentos de tempo cristalizado,
rugosidades do espaço habitado,
prático-inerte, trabalho morto,
ou chame como quiser,
ainda hão de ter quebradas as pernas
aqueles que olvidam e vivem de virar
as costas para os ecos, cores e odores
do passado ainda presente.
Não canto versos para mudar o curso
que segue a enchente. Sei que o homem que
bebe na fonte é o mesmo que causa danos
às águas em seu percurso. Não choro as perdas,
nem penso saber, apenas sinto, daí que eu sei
que a mesma água, fonte da vida, é capaz de afogar,
e deixar com sede aquele a deriva no mar.
– Excesso de água, tanto quanto a falta dela,
também causa enormes danos.
Não canto isso nem canto aquilo em versos
para que simplesmente lhe agrade os sentidos.
Não canto versos para mimar o ego,
os canto para sair de mim mesmo,
e ir até você, quem sabe;
só mesmo para sentir o gosto,
só para saber o que há do outro lado,
e enxergar a mim mesmo com outros olhos.
31 Mar. / 20 Jun. 2019
Ps. curte o outro poema: <https://eternizarte.org/blog/substantivacao