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Maré de Azar - Um cardume de não

Ricardo Ferreira Marques
dez. 16 - 8 min de leitura
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Sabe aquele dia em que tudo parece estar dando errado? Problema no emprego, problema no estagio, problema no salão de beleza e o mais complicado de tudo, problema no amor. Pois bem, nessa maré salgada, ou quem sabe azeda, resolvi fazer um doce, um bolo de banana. Amassando as bananas, parei para conferir a receita e recebi um audio que amassou meu coração. Era o audio dele, o cara que eu me permiti amar e viver. Dizendo que tentou mas não tinha conseguido sentir por mim o que eu sentia por ele. E o que eu pensei? Meu Deus, como eu vou fazer esse bolo agora? Vai dar errado!

Eu carrego comigo a crença que nunca vou conseguir fazer um bolo quando estiver triste ou com a cabeça cheia. Ou ele fica muito ruim ou esborra no forno, deixando a casa com um cheiro fortissimo de queimado, um cheiro quase insuportável como o que sinto naquele momento, quando faço um bolo triste, acontece um confronto pra ver quem é mais forte, o cheiro de queimado ou minha dor. As vezes nem o cheiro consigo sentir, em tempos de COVID faz medo, né?

Voltando ao audio, eu conheci esse cara, que por alguns instantes fez com que eu me sentisse o homem mais completo do mundo, era como se finalmente a vida tivesse me dado a chance de amar e ser amado. Saímos, rimos e nos amamos. Fica na memória o momento em que estavamos abraçados no banco da praça e em meio a tantos olhares de negação e reprovação um senhor que morava na rua passou cantando << é o amoorr >> rimos e em seguida ele completa << quando for casar me chama para o casamento que eu sou uma galinha de capoeira >>, nesse momento, olhando para aquele sorriso dele agradecendo ao senhor, me senti vivo e acolhido, finalmente posso amar alguém. Nessa maré salgada que estou agora, penso se devo dar continuidade ao bolo de banana, e mesmo tomado pelo receio de dar errado, adiciono uma xícara de açúcar na vasilha.

Fala de açúcar me lembra dele, meu Deus!!! Lembro-me do momento em que chegamos ao bar e ele diz << quero a bebida mais doce desse bar >>, nada parecida tão doce quanto seu sorriso e o brilho dos seus olhos. Bebeu a mais doce e me abraçou, o toque dos seus dedos no meu cabelo preso me fez sentir vivo, era o toque que eu precisava e buscava. Outra bebida doce, mas a dessa vez não tá o suficiente. Doce insuficiente assim como meu amor. Por aqui somente uma xícara de açúcar é necessária para adoçar o bolo. Se eu colocar mais uma será que adoça essa agua salgada e azeda que afunda meus sentimentos? Melhor não, esse bolo pode dar errado.

Errado como tudo tem dado em minha vida, só que agora estou sozinho! No estágio recebi a notícia que vou precisar mudar minha abordagem com meus pacientes, as pessoas que tinham mais de vinte e cinco anos, se transformaram em pacientes com menos de sete. Será que meus pequenos também gostam de doce? Esse cardume de não fez com que eu precisasse mudar muita coisa da minha vida. Como eu vou trabalhar com crianças com TDA e PC??? Eu não tenho afinidade. Acreditem se quiser, criei coragem e mergulhei nessa maré forte e com lágrimas e eu fui o tio preferido dos meus pequenos. Os gemeos que nunca conseguiram focar, passaram o atendimento todo centrado no brinquedo comigo, parece que os hipnotizei.

Os hipnotizei assim como o visto por ultimo do contato de quem eu pensei ser meu amor me hipnotizou. Desde nosso encontro, que parecia ter sido mil maravilhas, percebi um certo distanciamento, olhar a ultima vez que ele havia entrado no whatsapp passou a fazer parte do meu dia longo e cansativo, toda vez uma dor diferente, Ah, antes de continuar, adicionei duas xícaras de farinha no bolo. Continuando, fomos a minha casa depois do bar e tivemos uma noite quente e calourosa, me senti fervendo, meu sangue corria quente por minhas veias, meu coração batia, meu corpo colava ao dele, seu beijo encaixava no meu. Nesse cardume de não, parecia que eu tinha encontrado um sim, um sim para o amor, o sim para o meu par, o sim para um futuro lindo, Enganei-me, parece que esse sim disfarçado, era o não que mais me machucaria.

Adicionei a canela ao bolo. Logo lembro que nem a trança que tanto quis eu consegui colocar. A trança que eu disse << essa semana você vai me ver bonitão >>, ele não veria, nem eu vi. A forma que eu encontrei de me conectar as minhas raízes que eu nem sequer conheci, teve que ser adiada. O jumbo, o cabelo sintético que ia dar forma as minhas tranças eram insuficientes para meus cabelos cheios. Quando eu finalmente criei coragem para me transformar e me aceitar enquanto um negrão lindo, o destino veio e disse, continua assim. Confesso que muito dessa minha escolha tá relacionada a minha autoestima, tem andado baixissima, parece que assim como corrói os moveis, as maresia correu meu corpo e minha autoestima. Queria mudar! Queria ser visto! Queria ser bonito! Queria ser desejado! Quem não queria??? Fui abandonado!

Ainda bem que não abandonei minha vontade de fazer o bolo, na verdade, não abandonei pois foi um pedido de minha tia. Bolo no forno, hora da cobertura. Açúcar quente fervendo no fogo, não vai dar certo, é impossível uma calda dar certo quando você não está bem!! Mas pasme, a calda ficou lisa e brilhando, pronta para receber as bananas que já estavam cortadas. Enquanto mexia pensava em como poderia estar se tivesse dado certo, não somente a parte amorosa, digo a profissional e pessoal também. Quem eu seria? Minha vida seria doce assim como aquela calda de banana? Não sei.

No final de tudo, o amor não deu certo, mas o bolo deu! Foi um dos melhores bolos que eu já fiz, minha tia agradeceu muito e comeu muito, estava irresistível. Ainda bem que não permiti que a onda violenta, salgada e azeda tirasse o doce e o brilho da minha vida. A vida tem dado diversas pancadas, são vários os desafios, mas se eu desistir da doçura da vida eu me torno fraco. Eu só queria carregar comigo a permissão pra conseguir ser fraco e habitar livremente na terra, mas parece que pra viver na terra temos que ser fortes, é cansativo demais ser forte o tempo todo, eu só quero poder ser fraco. Eu só quero amar, eu quero a calmaria e uma vida tranquila. Que os ventos levem esse cardume de não para outras direções, que eu com minha doçura, na cozinha e na vida, consiga mergulhar de cabeça nessa maré alta e consiga sair cada vez mais forte. Vou focar em quem talvez prefira o doce do meu bolo de banana do que o doce de um shot com cachaça forte, que meu doce permita um sorriso e brilho no olhar, não uma careta de arrependimento.


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