(Epiglote)
agora o que resta?
nos tiraram o abraço
o ar
a fuga
se antes chorávamos os sem teto cobrindo
agora
além do choro da ausência do muro que protege
Choramos a rua
vetada
nos tiraram as estradas a calçada a vizinhança a feira
o mar
restam os devaneios
nos roubaram os sussurros em meio a barulhos de concreto duro
Aquele que nos carregava para nossas multidões
Antes invisíveis – agora desejáveis
Nas massas
o barulho disforme que antes nos obrigava a lamber ouvidos em palavras gritadas
cala agora desde dentro da nossa traquéia
resta ela
A traquéia
intubada
vetado o vento
resta o ar mecânico e as torres caras do oxigênio comprado
restam mãos cansadas
que pulsam bravamente os corações desistentes
restam corações sem respiradores
não foram sorteados na loteria dos vivos
desmerecidos
envelhecidos
nos tiraram avós e filhos
Nos levaram os abraços e as flores no cemitério de partidas
que já antes nos negavam
Choros?
Já diziam feios
os lutos?
Fraquezas de quem vive
Vetado o adeus
Agora e lá ontem
enterro do luto
lá e hoje
resta
a fraqueza resignada e a abafada perda
a traiçoeira perseguição da palavra trocada
se choraria a saudade de quem amo e foi
resta engolir e ficar
negação da dor
moral do declínio
restam as fugas para dentro
a deglutição obrigatória
do intolerável
nos levaram as ruas da revolta
Roubados os narcisismos
agora exaustivos
roubada a perspectiva
a ilusão da certeza
da planilha de meses vindouros
Restam memórias e pesadelos
agora bem-vindos
Restam
Os filtros do ar
olhos
o embaçado do vidro para ver o mundo
inacessível
e resta
o silêncio
(Flávia Andrade, maio de 2020)
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