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CASA ALHEIA

Marcelo Gomes Jorge Feres
Jun. 26 - 5 min read
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CASA ALHEIA

 

 

Entro, pela porta polida, em casa alheia. Sento-me diante da mesa posta, em uma poltrona confortável. Sou indiferente aos aspectos da moradia, mas fito de maneira teimosa, e incessante, a janela acortinada que isola o oxigênio bondoso. Se as crianças tropeçam no tapete ou se o armazém priva-as da refeição, não movo sequer um dedo, não esboço qualquer atitude de socorro. Os anfitriões me cercam e colorem a casa e constroem castelos e perfumam o ar, mas algo me diz que lá fora está a verdadeira razão de ser. Eu me levanto, rodeio a janela obscura e incerta, torno a sentar e levantar, dou voltas e me canso, observo os detalhes mas sou surdo, cresço em anos e me sento, levanto-me apressado e tenho um sorriso impaciente e angustiado, tenho muita calma e sofro pelo absurdo de ser, volto-lhes as costas e me chamam, acariciam, me prendem e pedem, tocam minha música e esperam. Em rodeios e rodopios alucinados, e diários e noturnos, a casa cresce, desenfreada, e me absorve, e eu revido e a absorvo, e novo jogo de existir é posto sobre a mesa posta, e ainda não haverei de descortinar um pequeno ponto de saída em meio ao gigante ambiente do dia-a-dia. Olho ao meu redor e aperto os olhos e não compreendo, e falo e ouço risadas soltas em ambiente de gala, subo e desço escadas, penetro quartos e salões, que casa!

 

Já não é moradia alheia, chamam-me filho, trocam minha roupa e beijo meus irmãos, que triste pesadelo. E finalmente me deixam partir, para a escola, para o cinema, até a porta ou janela para chorar no enterro que parte. Eu me revolto e fico impassível e doente, todos adoecem comigo, mas os hinos da salvação entoam o chamado e correm os médicos e curandeiros, soletram e insistem, amam e suplicam, e eu cedo aos encantos de uma criatura inocente e bela que me cerca e me dá as mãos, e juntos corremos pelos jardins da sala ao lado, alegres, esquecidos e descontraídos, aflito.

 

- Não se esqueça de lavar as orelhas!

 

Após o jantar há festas e planos, as mães contam histórias e eu empalideço, dizem é-assim e nada ouço, e rezam por mim e eu pergunto por quê, esperam que assim-seja e simulo distração, e aos poucos sou vencido por mim mesmo, o cansaço, a dor e a agonia dos vencidos, a carreira da liberdade furtada, o comportamento impensado e insuspeito do prisioneiro sem escolhas. E a obsessão da fuga criando janelas irreais nas paredes do quarto, do corredor, da razão filosófica, num triste caminhar da mesa posta à escarradeira doméstica de todos nós. E novos há que de todos os lados chegam à casa alheia, a minha casa perfumada e colorida, com cores novas e perturbadoras nos olhos eu perfumo o ar e acaricio e troco as roupas, e tenho sonhos horríveis à noite, e tenho amigos e uma vaga ocupação - é o início!

 

E de repente sobressalta-me a figura de uma tenebrosa janela e o medo de partir me assola o coração, e eu escondo o rosto cansado nas mãos sofridas e me sento, e de costas para a janela de outrora esboço os inícios de uma história, criticada, cansada, tão fútil! E pinto várias janelas coloridas e janelas iguais e janelas rasgadas, uma a uma, todas as histórias, empoeiradas e guardadas, esperando qualquer coisa que as distraia, a televisão, o jantar, chega! Senão enlouqueço ou aceito! E novos seres sempre surgem, brincando, tentando, seres invisíveis que cantam em meus ouvidos e recebem as blasfêmias com gratidão, conciliação, paciência, não! Não irei sujar-me com a corrupção da sensatez! E sou posto ao centro da roda da confusão e grito e choro, e estou deitado na cama do quarto, pensando, existindo, negando. E me descubro em delírio, mortalmente ferido, até o último de meus dias, de asas partidas, de alma livre que flutua e carrega consigo os humores da aflição, por entre nuvens e bem alto, se despencar morro, se mantiver fujo.

 

E novamente a mesa posta, todos sentem o meu gosto, comida com sabor estranho, todos os dissabores, amargos e doces, e meu paladar é amorfo, conforme o fundo do poço, bem fundo e escuro, silencioso e indecifrável, difícil de penetrar, de escapar, tapar, fechar os sentidos e dissimular o ser, tudo ser, ser, nada, a gargalhada, a ironia, a imperfeição do ser perfeito, agasalhado, com frio, seu pai e filho, seu abrigo alheio, sua casca, o próprio ser prendendo o ser - a porta da criação, a janela da alma, as cortinas do ser, a mesa da aflição. A sua casa alheia.

 

 

 

 

 


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