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CÁRCERE

CÁRCERE
M. Demóstenes
Aug. 4 - 4 min read
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Sulfurava-se sobre mim uma luz escura e estigiante, por uma fenda, no teto de meu cárcere. Deitado em meu catre nas profundezas reservadas aos marginais e somente a eles, restava a mim o preço da dura pena a que fora condenado sem saber porque ou como ali chegara. Temendo que daquela fenda negra se debandasse uma chuva de ratos como uma tempestade esdrúxula naquele meu sufrágio fúnebre.

Eis que acima de mim tornara-se de intensa e asquerosa agitação. Mal pudera eu perceber de início o que me reservara o destino. Oh! Quão doce seria a morte. Rangi meus dentes quando a fúria do desespero quis fugir em grito. Fora eu sentenciado a viver debaixo da latrina pública?

Às minhas próprias vistas escorria o escárnio máximo da humilhação ululante de meu destino amargo e mefítico. O asco putrefato castigou-me até minhas entranhas expulsarem a parca refeição que me mantinha. Não era difícil concluir que a loucura venceria a sanidade. Já perdera a noção de tempo há muito abandonado ao negrume.

Meu peito afundara. Minhas narinas ardiam. Além da escuridão fétida não haviam portas ou janelas. Como houvera eu ter sido posto ali? Não havia um mísero rascunho em minha mente. Então desci e desci mais fundo em pensamento. Desci, desci e não havia uma ponta sequer, ou mesmo um fio ou trapo imundo, além dos que vestia, que me desse a recordar como poderia ter adentrado eu àquela cova vil e putrefata.

Magia negra?

Havia uma fissura entre as paredes e o piso imundo. Cerca de dois dedos. Flutuavam aos quatro cantos as paredes como monólitos em uma dimensão de horror. Até que ouvi o sibilar das serpentes. Surgiam sob as fissuras e se espichavam. Apavorei-me encolhido. Os seres cuspiam em mim e eu, embora temeroso do veneno escorrendo sobre meu rosto, o bebi e matei a sede atroz que me consumia. Desejei a morte. Uma doce misericórdia seria.

Ou será?

Estava morto? No inferno? Somente senão assim poderia estar condenado a viver abaixo da fétida latrina pública? A humilhante misericórdia era o cuspe da serpente me matando a sede. Um escárnio. Era o Hades. Não poderia ser outra coisa. 

Que pecado tão grande houvera eu cometido para merecer tão ominoso destino?

 Roubar? Eu tinha fome, roubara comida, sim, talvez uma ou outra vaidade, mas erga-se o homem que não for vaidoso...

Fornicar? Meu corpo clamava as prostitutas que me assopravam beijos, sim, confesso, mas eu sou só mais um entre até mesmo os santos...

Estuprar? Ela me provocou, ela queria, oras...

Chantagear? Como alguém pode ser chantageado senão por seus próprios pecados? Nada demais...

 Caluniar? Deus esteja convosco se vós nunca caluniastes alguém...

Matar? Mas... mas...

O que terias feito tu se alguém denunciasse seus roubos, fornicações, estupros, chantagens e calúnias? Hã? Me diga! O que farias tu se fostes confrontado com o dedo do julgo ante tua face, diga? O dedo lhe apontando e jurando uma vida inteira atrás das grades...

O que farias tu? Eu? Eu cravei-lhe uma faca no meio do umbigo. Sim, confesso! Eu confesso, serpentes! É isto o que vocês queriam? Cravei-lhe a faca e a desci lhe abrindo o ventre antes de lhe chutar escadaria abaixo...

Isso... o que me faz lembrar...

 Enfim...

As serpentes me encantoaram. Eu esvaziei meu peito em um uivo agudo pouco antes de uma delas penetrar-me a narina em um delírio agonizante e irreal. A maldita desceu-me pelo esôfago. Eu novamente vi aqueles olhos. Olhos espantados que se arregalavam com minha lâmina rasgando. Olhos que diziam “você vem comigo!” e me agarravam o braço escada abaixo. O peso. A serpente regurgitando em meu estômago. O estralo de minha própria espinha partida. Eu me lembrei e então... despertei.

Estava fora do cárcere de pedra e dentro do cárcere de meu próprio corpo. Alimentado por sondas. Um vegetal me tornei para pagar os meus pecados.


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