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Aguinaldo e o encontro marcado com os ossos

Aguinaldo e o encontro marcado com os ossos
Sérgio Pacheco
Apr. 7 - 8 min read
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Há alguns anos, fui premiado ao assistir uma das melhores aulas da minha vida acadêmica. Foi quase uma epifania, uma revelação! Como professor, foi como se tivesse recebido uma “senha”. A partir daquele dia passei a olhar o outro com muito mais atenção, na tentativa de entender de onde vinham suas palavras.

 

O jovem professor de Filosofia traçou na lousa escolar o desenho de um quadrado e um mosaico de círculos dentro dele. Disse o mestre que a figura representava o “conhecimento da verdade” e que os vários círculos representavam as diversas tentativas, ou melhor, os “saberes” que buscam a tal “verdade”.

 

E foi nomeando um a um cada círculo!

 

Existe o caminho trilhado pela “Ciência”. Ele é racional e é produzido mediante a investigação da realidade, seja por meio de experimentos, seja por meio da busca do entendimento lógico dos fatos, fenômenos, relações sociais e das coisas.

 

Da ciência deriva o saber “Tecnológico”. Esse tem como objeto o domínio do mundo e da natureza. O conhecimento é o saber fazer, a operacionalização.

 

Também de forma racional, existe o saber “Filosófico”. Baseia-se na especulação em torno do real, tendo como objeto a busca da verdade.

 

De outra forma, há o saber “Teológico”, no qual o conhecimento é fundamentado fora da lógica racional. Baseia-se no conhecimento mítico e na fé.

 

Há também a “Mitologia”, propriamente dita, como forma de conhecimento. Nesse modo de saber, acredita-se em modelos naturais e sobrenaturais dos quais brota o sentido de tudo o que existe.

 

Destaca-se ainda o saber “Empírico”. É o deixar viver! A prática! Tudo o que diz respeito à condução da vida na terra pode se tornar fonte de exploração e conhecimento da realidade.

 

Por fim, sobrevive o saber da “Arte”. O tipo de conhecimento que valoriza os sentimentos, a emoção e a intuição humana. Dessa forma, ao valorizar as experiências estéticas do humano, proporciona o refinamento do espírito, sem o qual o ser humano se vê empobrecido e apequenado.

 

E concluiu o professor de Filosofia: O ser humano é fabuloso! Cheio de facetas. Capaz de produzir diversos tipos de informações, conhecimentos e saberes. Nenhum tipo de saber é melhor do que o outro, pelo contrário, todos se completam, se suplementam para explicar a verdade humana.

 

Essas lembranças acadêmicas me fazem lembrar a história do Aguinaldo, o “agnóstico”, no sentido do senso comum da palavra. A doutrina filosófica do agnosticismo considera inútil discutir temas metafísicos, pois são realidades não atingíveis através do conhecimento. Na verdade, o rapaz era fiel ao saber racional. Isso para ele era incondicional, quase uma religião. Dizia que não perderia seu tempo em pensar em “coisas do espírito” em fantasias.

 

Certa ocasião, o Aguinaldo foi ao centro comercial da cidade para um compromisso. Para evitar o trânsito, resolveu fazer uso de sua motocicleta. Ele se gabava por ser um às na direção da moto. Eram anos de treino e preparação. Conhecia cada passo do caminho. Acidente zero, não havia erro!

 

Apesar de sua autoconfiança racional, sua esposa sempre temia o pior. Poderia ocorrer um acidente, um assalto, ou coisa pior do que isso: o marido cair, bater a cabeça e nunca mais levantar. Fazia coro à sua sogra, que não cansava de dissuadir o filho de subir na “máquina de fazer defunto”. Dizia a genitora que até promessa ela fez, até novena para o São Columbano, o protetor dos motociclistas, para o filho desistir da motocicleta.

 

Mas nada disso adiantava, o Aguinaldo não acreditava em deuses, nos santos, muito menos contava com a sorte ou azar para decidir o que fazer. Ele sempre raciocinava e encontrava uma razão para continuar pilotando.

 

Naquele dia ele foi metódico, como sempre. Dirigiu cauteloso e estacionou a moto no local costumeiro, em meio a um montão de outras na esquina movimentada. Essa era uma forma de esconder o veículo, evitar sinistro. Como só agia com prevenção, tratou de passar uma corrente nas rodas da moto. Assim, seguro, foi para o compromisso.

 

Duas horas depois retornou ao local onde havia estacionado a motocicleta. Olhou a fileira de máquinas, buscando identificar a sua. De repente, um frio passou na espinha do Aguinaldo. Com certeza foi ali que parou. Mais certeza ainda ele teve de que tinha sido uma vítima de furto de moto.

 

Como isso tinha sido possível? Seguiu todos os protocolos. O melhor local, a corrente e o cadeado.

 

O primeiro pensamento que teve foi ligar para a esposa e contar o acontecido. A mulher, como se tivesse tomada de alguma entidade espiritual, começou a dizer para Aguinaldo um “salmo do livramento”: - “Pois livraste da morte a minha alma, das lágrimas, os meus olhos, da queda, os meus pés” (Sl 116.8). E completou a esposa: - Deus sabe o que faz. Se a moto foi levada é por que algo poderia lhe acontecer.

 

As palavras soaram como um desafio aos ouvidos do infiel. Afinal, por não acreditar em destino ou força superior, para ele tudo se passava de um incidente. Alguém furtara sua moto e era questão de saber procurar, identificar quem foi e onde teria levado o objeto do furto.

 

Não se deixou desmoronar o rapaz. Rapidamente, tratou de fazer o Boletim de Ocorrência Policial, mas estava decidido que não iria virar estatística, aguardar o trabalho oficial dos órgãos de segurança. Fez contato com um colega que já tinha trabalhado na Polícia e montaram uma estratégia racional. Estava determinado em buscar pistas, não iria se dobrar aos caprichos do destino ou do acaso.

 

Conversou com as pessoas por perto, conseguiu imagens do gatuno. Estabeleceu um raio de ação a partir do local do sinistro e iniciaram uma busca obstinada, principalmente nos estacionamentos da região, haja vista o costume dos larápios de esconder as motos futadas e esperar o momento para evadir-se do local. Nesse planejamento, não perder tempo era fundamental.

 

Antes de chegar ao final da tarde, o Aguinaldo venceu a batalha. A felicidade tomou conta do abnegado rapaz. Conseguiu, por meios próprios, utilizando as técnicas de investigação e o raciocínio lógico encontrar o veículo. À três quadras dali ele descobriu a motocicleta camuflada no meio de outras tantas estacionadas na rua.

 

Já em casa foi só comemoração. Chamou os amigos e narrou com emoção a sucessão de eventos extraordinários e as ações tomadas, capazes de provocar a admiração, a surpresa, a maravilha, a grandiosidade da epopeia.

 

No dia seguinte, ao se dirigir para o trabalho, o Aguinaldo meteu a moto debaixo de um caminhão de frigorífico. Com a batida, o motorista perdeu a direção e o caminhão tombou na pista. A carga era de ossos de animais, caiu ossos para todo lado. Teve até gente saqueando a carga. O Aguinaldo foi socorrido pelo SAMU. Fratura exposta, hemorragia.

 

Hoje o incrédulo Aguinaldo não trabalha mais. Aposentou-se por invalidez. Teve suas penas amputadas e fica sentado na cadeira de rodas, em frente ao portão de sua casa. Dizem que toma remédios para depressão. Agora ele tem tempo demais e não para de pensar no acaso.


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